Fazer o mapa mental sobre a ópera Carmem de Bizet, me fez pensar: quais pintores se inspiraram pelo mito da mulher sedutora, fatal, mundana e passional?
Olhar e perceber como artistas registram suas impressões sobre a obra de outro artista e com linguagens distintas, a pintura, a ópera e a literatura, por exemplo. A começar pelo próprio Bizet que se inspirou no romance homônimo do francês Prosper Mérimée, de 1845, para escrever a ópera Carmen, que estreou em Paris no ano 1875. Mulher transgressora e independente, Carmen é muito mais que uma personagem de romance ou de ópera. Nela se concentram muitas fantasias e tensões da sociedade europeia da época.
ENTENDENDO O MITO
Mérimée abre seu romance com uma citação do poeta alexandrino Palladas (século 5 d.C.), “Toda mulher é amarga como fel, mas existem duas boas horas: uma na cama, outra na tumba”. A passagem foi publicada originalmente em grego, idioma que até meados do século 19 só era estudado por homens, essa introdução marca bruscamente quais eram os assuntos centrais que Mérimée conduziria o leitor: o amor e a morte.
Tanto no romance quanto na ópera existem múltiplas leituras. Tradicionalmente, se tem interpretado como expressão da tragédia implícita nas relações entre homem e mulher, da sua atração fatal que conduz a destruição de ambos. Mais recentemente, no entanto, algumas análises têm mostrado como, em ambas as obras, se reflete a visão burguesa, masculina e eurocêntrica do século 19 com respeito ao outro – isto é, as classes baixas, as mulheres e as minorias raciais – que não encontra lugar nos rígidos costumes da sociedade ocidental. Nesse sentido a morte de Carmen teria um valor de sacrifício para a sociedade de forma simbólica – literária ou operística – para o intangível, a mudança, o perturbador, ameaçando desestabilizá-la.
REFLEXO DE CARMEN NAS PINTURAS ESPANHOLAS
Selecionei alguns exemplares de pinturas espanholas, inspiradas no universo de Carmen oferecendo a possibilidade de aprofundar-se na iconografia que tem rodeado à sempre polêmica figura dessa mulher.
A obra de José Dominguez Becquer “La Giralda a partir da rua Placentines” (c. 1836), com ligeiras variações, repete o mesmo esquema de uma pintura realizada três anos antes por David Roberts, pintor escocês romântico conhecido por suas aquarelas e gravuras representando os monumentos egípcios e espanhóis, é autor das primeiras pinturas sobre Andaluzia contemporânea. O enquadramento e a hora do dia representados são os mesmos. Apenas há a troca das figuras, menos numerosa e mais esboçadas.
As telas de Manuel Cabral Aguado Bejarano – “Escena en una venta” (1855) e de Angel Maria Cortellini – “Salida de la plaza” (1847) – nos apresentam aos costumes tipicamente de Andaluzia. Ambos evocam dois dos temas centrais do romance de Mérimée: touradas e banditismo. Embora a figura feminina seja o centro da composição, é o seu companheiro que atrai a atenção dos olhares, num ambiente de maciça presença masculina. No quadro de Cabral Aguado Bejarano os personagens masculinos são claros protagonistas. Três deles – contrabandistas – carregam trabucos, e o que está mais perto do observador, um punhal preso no cinto. A mulher, pelo contrário, sustenta uma viola e seu papel está sublinhado pelo cão – símbolo de fidelidade – abrigado na sua saia.
O paisagista Manuel Barrón também dedicou numerosos quadros ao tema do contrabando. Em “Emboscada a unos bandoleiros en la cueva del Gato” as figuras estão repetidas na paisagem dramatizada. O fundo agreste da Serra de Ronda foi substituído por uma paisagem classicista equilibrada que evoca o contraste entre o mundo turbulento de contrabandistas e a ordem estabelecida pela Guarda Civil. Em todo caso, o que permanece inalterado é a dicotomia entre o papel ativo desempenhado pelos bandidos, repelindo a intervenção da Guarda Civil, e a mulher mais passiva e sentimental, protegendo seu filho, enquanto grita para que cessem o tiroteio.
Na pintura do século 19 e início do século 20, o personagem de Carmen está entre mulheres, algumas burguesas outras trabalhadoras, que tomaram consciência de si mesmas e de seu papel na sociedade. No entanto, a representação dessas “filhas” de Carmen por artistas masculinos, mostra quase sempre a dualidade entre a constatação da sua crescente importância social e atribuição de papéis tradicionais. Tal como no quadro “Julia” (c. 1915) de Ramon Casas, retrata a modelo com quem se casou em 1922. Julia está pintada sob o ponto de vista de baixo para cima, que monumentaliza a figura. Seu olhar é desafiador e tem os braços na cintura de maneira arrogante. Mas, é sobretudo a sua jaqueta de toreador preta e vermelha – vestimenta cuja ópera de Bizet ajudou a colocar moda – que se refere a uma inversão dos papéis masculinos e femininos. E, no entanto, cravos que decoram seu cabelo e seu amplo decote fortemente iluminado tornando-a simples objeto de desejo.
Também Gonzalo Bilbao Martinez representou o novo papel social da mulher – no caso, as trabalhadoras – como no quadro “Las Cigarreras en la fábrica” (1910)”. O pintor sevilhano, inspirado pela ópera de Bizet, presta uma homenagem às trabalhadoras da Real Fábrica de Tabaco de Sevilha. Se bem que, qualquer desejo de reivindicação social fica diluído pelo protagonismo concedido ao grupo de trabalhadoras – serão modelos profissionais? – que mais se parecem enfeitadas para uma festa e negligenciando seu trabalho para olhar em direção ao observador.
Frente a esta interpretação folclórica de Carmen, na Europa, sobretudo na Alemanha, prevaleceram as leituras da ópera de Bizet que enfatizavam o destino trágico de seus protagonistas. Um dos principais apologistas de Bizet foi Friedrich Nietzche quem, distanciando-se do niilismo da ópera Parsifal de Wagner, converteu a Carmen em paradigma da vertente dionisíaca da tragédia. Como escreveu em 1888 a propósito da ópera do compositor francês, que a contemplou em não menos de umas vinte ocasiões: “Finalmente, o amor, o amor novamente traduzido na linguagem da natureza! Não o amor de uma ‘virgem superior’! Nenhum sentimentalismo! Senão o amor como fatum, como fatalidade, cínico, inocente, cruel e, precisamente por ele, todo ele natural! O amor, a guerra é um de seus meios, seu fundamento é o ódio à morte entre os sexos!”
Picasso retoma esta interpretação nietzsniana da ópera de Bizet para elevar Carmen à gama de mito universal. Ele simboliza o destino fatal dos protagonistas através do combate até a morte entre cavalo – égua, quase sempre – e o toro, próprio da festa taurina tradicional. Presente em grande parte da sua produção, como é o caso da sua Tauromaquia dos anos 30, entre elas a “Corrida de Toros” (1934), que destaca o drama se desenvolve na luta de um touro antropomórfico e um cavalo montado por uma cabeça em forma de relógio, símbolo da morte.
Depois da Segunda Guerra Mundial, Picasso abandonou Paris e foi viver no sul da França. Alí, a pedido do poeta Louis Aragon, realizou a ilustração do texto de Mérimée. Especificamente, realizou 4 água-fortes que representaram os temas do romance e 38 gravados a buril que trazem rostos femininos, masculinos e de touros. Em sua obra, ao mesmo tempo que o cavalo e o touro intercambiam seus papéis de torturador e vítima, simbolizam não só o combate entre homem e mulher, senão também a luta da vida e da morte, e, em última instância, do pintor e da pintura.
Na riqueza e ambiguidade do caráter próprio de Carmen, que dá origem a tais interpretações díspares, encontra-se grande parte no fascínio que Carmen tem exercido ao longo do tempo e que, certamente, seguirá influenciando artistas de várias linguagens.