Nesta carta que o artista escreve para Charles Morice, época em que escreveu inúmeras cartas aos tribunais de Papeete, protestando contra a sua condenação a três meses de prisão por um tribunal local, motivada por suas observações sobre a polícia.
Ilhas Marquesas, abril de 1903
“ Estou por terra, mas ainda não vencido.
O índio que sorri no suplício estaria vencido?
Decididamente o selvagem é melhor que nós.
Você se enganou quando disse, certo dia, que eu estava errado em dizer que sou um selvagem.
No entanto é verdade: sou um selvagem.
E os civilizados o pressentem, pois em minhas obras não há nada que surpreenda ou perturbe, a não ser esse ‘selvagem-apesar-de-mim-mesmo’.
Por isso é inimitável.
A obra de um homem é a explicação desse homem.
Daí, duas espécies de beleza, uma resultante do instinto e outra proveniente do estudo.
Certamente, a combinação das duas com as modificações que ela acarreta confere uma grande riqueza, muito complicada, que o crítico de arte deve empenhar-se em descobrir.
Hoje, você é o critico de arte; permita-me não guiá-lo, mas aconselha-lo a abrir os olhos para o que acabo de dizer em algumas linhas, um tanto misteriosamente.
A grande ciência de Rafael não me desvia e não me impede, nem por um instante, de sentir, de ver e compreender seu elemento primordial, que é o instinto do belo.
Rafael nasceu belo.
Nele, tudo o mais são apenas modificações.
Acabamos de passar, na arte, por um longo caminho de desregramento causado pela física, pela química, pela mecânica e pelo estudo da natureza.
Tendo perdido toda a sua selvageria, já sem instinto e, por assim dizer, sem imaginação, os artistas se dispersaram por todos os atalhos para encontrar elementos produtores que eles não tinham força para criar.
Consequentemente, agem apenas como multidões desordenadas, sentindo-se assustados como que perdidos quando estão sozinhos.
Por isso não se deve aconselhar a solidão a todo mundo, pois é preciso ter força para suporta-la e agir sozinho.”