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A transformação do papel do artista

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É impossível dissociar a obra do artista, portanto a obra carrega em si toda carga intelectual, emocional e da vivência daquele que a produz. Ao percebermos as mudanças de características das obras de arte, podemos notar que os artistas que a fizeram também viveram essas alterações e inovações. O artista é um trabalhador que procura a todo tempo lidar com suas inquietudes, através disso e da técnica que possui, cria a obra de arte que carrega a mensagem dele para o mundo. Como a figura do artista foi se transformando ao longo do tempo?

DO MAGO AO ARTISTA CLÁSSICO

Não há condições de decifrar se existia algum tipo de diferenciação comunitária para o pintor que realizava os bisões das cavernas ou o escultor que dava forma aos utensílios durante os tempos pré-históricos. Não é provável que os pintores rupestres estivessem diferenciados do resto da comunidade, o caráter instrumental-mágico dos desenhos parece corroborar o fato de que estes povos caçadores e nômades plasmavam signos e imagens como uma faceta integrada no conjunto e suas atividades básicas: a caça, a reprodução e o combate.

Nas tribos primitivas mais avançadas, a aplicação das práticas artísticas (dança, canto, música, tatuagem, ornamentação) na consciência mágica perfila uma centralização ou uma supervisão dessas práticas por parte do mago ou feiticeiro. Este detém a atribuição artística ou dirige àqueles que a executam. Nesse período a arte forma parte do rito mágico e suas finalidades são as de súplica, de inovação e de cura. Temos então o primeira figura: o artista-mago.

As circunstância da arte modificaram-se substancialmente com a substituição da consciência mágica pela consciência místico-religiosa e com o sedentarismo, que possibilitou o surgimento dos impérios arcaicos. A crescente objetividade do espaço de representação artística culminou na origem dos espaços arquitetônicos indicando uma das funções do artista futuro. Deixada para trás a integração estrita das práticas artísticas nas mágicas, as novas necessidades requeriam uma rigorosa especialização. A edificação das tumbas, templos e palácios exigiu a transformação do artista em construtor e, de fato, nos impérios arcaicos o desenvolvimento da escultura e da pintura depende do modo estreito do desenvolvimento da arquitetura.

A arte egípcia é a que proporcionou mais informações sobre a situação do artista antes da chegada da civilização grega. A rígida hierarquização da sociedade egípcia baseada no poder teocrático do faraó e das castas sacerdotais, tendeu a distinguir entre uma arte do poder político-religioso e um artesanato popular vinculado à vida doméstica, à moradia e aos utensílios. Esta distinção qualitativa entre as práticas artísticas destinadas à elite e as destinadas ao povo marcaria ao longo do tempo a diferença entre as belas artes e as artes aplicadas.

No Império Antigo formaram-se escolas de arte, com mestres, aprendizes e modelos. Conservaram-se vários desses modelos que serviam para copiar durante a aprendizagem, e, inclusive, algumas pinturas murais egípcias mostram cenas escolares com os mestres e seus ajudantes trabalhando em projetos artísticos. Mas ainda assim, a arte egípcia oficial e a serviço de uma estrutura político-religiosa impedia a originalidade expressiva do artista e a inovação estilística.

A civilização grega acabou com esta contradição e mudou notoriamente o significado do artista. Diante do carácter artesanal e prático das outras atividades, a música e a poesia eram as únicas artes nobres, ao entender-se que eram alheias ao trabalho físico. A própria mitologia diferenciou cuidadosamente umas das outras ao fazer contrastar a formosura de Apolo – príncipe das Musas – e a virtude de Orfeu – símbolo da música – com a brutalidade de Hefaistos, ferreiro e representativo, portanto, dos artesãos. Admitida a atribuição artesanal para escultores e pintores – durante a arte pré-clássica -, e sua inferioridade social com respeito a músicos e poetas, é necessário ver as mudanças sociais ocorridas na Grécia para a mudança do papel do artista. Em primeiro lugar, o desenvolvimento da estrutura sócio-econômica, com o assentamento das polis, exerceu um considerável aumento da demanda de obras. Em segundo lugar, as tendências antropomórficas e naturalísticas facilitaram o desenvolvimento das expressividade individual e, portanto, da liberdade criativa. Ao contrário dos egípcios, os pintores e escultores gregos não tiveram que ater-se à aprendizagem e repetição permanente de formas imutáveis, mas sim, ao tomar como referência o modelo natural, estiveram abertos a um progresso expressivo ilimitado.

Durante os século VI a.C. e V a.C., a individualização estilística da arte tentou ser referendada por alguns artistas para confirmar sua própria personalidade e, muito provavelmente, para acrescentar sua dignidade social. Alguns artistas começaram a assinar suas obras, a escrever sobre elas, e inclusive, a representar-se a si mesmos. A comercialização da arte e o benefício econômico para os artistas, acentuou-se na antiga Roma, onde, além do colecionismo, iniciaram-se verdadeiras modas, mediante as quais as famílias patrícias escolhiam seus artistas favoritos, geralmente os gregos, e pagavam elevadas quantidades pelas suas obras. Mesmo assim, apesar do artesão ter se tornado o artista genuíno, conquistando sua capacidade criativa e total liberdade de expressão, ainda havia o preconceito contra o trabalho manual do artista, que a sociedade e intelectuais consideravam desprovido da dignidade intelectual de poetas, músicos ou filósofos.

O ARTESÃO MEDIEVAL

Com a queda do Império Romano e o aparecimento da Idade Média a figura do artista sofreu uma regressão em todos os sentidos. Houve, então um lento progresso para trazer a tona novamente a figura do artista. Isso aconteceu, ao longo da Idade Média, primeiro, vinculado à atividade do monge, e depois, sob o estatuto do artesão. Entre os séculos V e XVII os mosteiros foram os únicos redutos da cultura na Europa ocidental. Em um princípio a tarefa fundamental das bibliotecas monásticas foi a conservação e cópia de livros, especialmente os escritos dogmáticos da religião cristã mas também uma grande quantidade de textos transmitidos desde a Antiguidade. Este trabalho copista deu origem à atividade artística mais importante da Alta Idade Média: a lustração de livros.

Foi precisamente o aparecimento das cidades medievais, durante os séculos XII e XIII, que mudou de maneira drástica o panorama da arte europeia e a situação do artista-artesão. O Românico deu passo ao Gótico e a construção de mosteiros e igrejas rurais à construção das grandes catedrais. Ainda assim, os pintores e escultures dependiam das obras arquitetônicas para mostrarem seus trabalhos. A partir de finais do século XIII começou um processo de emancipação da escultura e da pintura com respeito à arquitetura. O estabelecimento de ateliês e a ação de um mercado de arte deu lugar a que os artesãos se acolhessem a um tipo associativo, o grêmio, de enorme transcendência na transição da arte medieval à renascentista.

Em virtude do Humanismo, os artistas do Renascimento puderam desfrutar dos ambientes intelectuais e da realeza. Alguns casos célebres desse fenômeno foram: Leonardo na corte de Francisco I, Tiziano na de Carlos V, Rubens a serviço do rei da Espanha em Flandres, Velázquez camarista de Felipe IV. Sob os pontificados de Júlio II e Leão X, converte-se no maior mecenato da arte de todos os tempo. Júlio II, ao reunir em sua corte: Bramante, Rafael e Michelangelo, empreende tarefas artísticas de tal envergadura – com trabalhos arquitetônicos e decorativos da Igreja de São Pedro – que a posição do artista de agiganta enormemente aos olhos da sociedade e, também, dos intelectuais que, por fim, devem aceitar a pintores, escultores e arquitetos como seus iguais.

DO NOVO ARTISTA AO ARTISTA ACADÊMICO

A origem das academias de arte de Florença e Roma esteve vinculada à posição vanguardista do processo artístico italiano com respeito ao dos outros países, mas também à própria idiossincrasia da arte na segunda metade do Cinquecento, isto é, do Maneirismo. No século XVII, a época genuína do Barroco, a situação do artista é muito diferente de acordo com a diversidade política e ideológica nas nações europeias. Os países não católicos conservam estruturas associativas mais retrógradas, enquanto que os países católicos davam mais liberdade de expressão, glorificando a Igreja da Contra-Reforma. Em 1648 funda-se a Académie Royele, a mais famosa das academias de arte e a que estava destinada a mudar notoriamente a figura do artista.

Os programas de ensino dessa academia de artes eram amplos e rigorosos, submetendo os estudantes a uma seletividade estrita. Os cursos incluíam tanto ensino técnico (desenho, modelado, anatomia, etc.) quanto, inspirando-se no projeto educativo renascentista, matérias humanísticas e científicas como ciências naturais, astronomia, geografia, matemática, etc. Após o término dos cursos, os alunos mais destacados eram enviados a Roma (daí a obsessão da “viagem a Roma” dos artista dos séculos XVIII e XIX) durante quatro anos, com a condição de remeter a França seus trabalhos. Concluindo o ciclo de formação, o artista adquiria a categoria de acadêmico e, graças à proteção monopolista oficial, tinha assegurado o seu trabalho ditante daqueles pintores ou escultores não graduados pela Académie.

Somente durante a Revolução Francesa começou a recusar-se a noção de arte ao serviço do Estado e surgiram vozes a favor da liberdade criativa. Realmente esta mudança, magnificada pelo processo revolucionário, estava vinculada ao nascimento do movimento romântico, o qual, de acordo com suas premissas, concebia o processo criativo desde um ângulo totalmente oposto do artista acadêmico.

O ARTISTA CONTEMPORÂNEO

A princípio do século XIX, a concepção artística do Romantismo induziu a uma mudança radical com respeito à função da arte e ao trabalho do artista. Para os romântico a criação artística era, acima de tudo, a expressão da subjetividade individual. Durante o século XIX proliferaram as academias de arte, algumas delas, como École des Beaux-Arts parisiense, mas apesar disso os artistas buscavam os ateliês dos mestres para o aprendizado das artes, como no Renascimento, a fim de ter mais liberdade criativa e contato com a natureza. Como herdeiro, em certo modo, do ateliê renascentista surgiu o estúdio; isto é, o marco por excelência do artista atual.

Nas origens do século XIX o estúdio é o lugar de trabalho do artista e indica personalização e independência. Também é o espaço próprio da reflexão artística mediante a qual o homem, em solidão, concebe e realiza sua obra. No entanto, o estúdio poder ser, também, um lugar de reunião no qual alguns discípulos vêm para receber os ensinamentos de seu mestre ou, simplesmente, onde intercambiam opiniões diversos artistas.

Na Paris de meados do século XIX, realizam-se as primeiras exposições sistemáticas de pinturas (os Salões). A burguesia parisiense exigia uma drástica transformação do mercado de arte encaminhada a substituir a reduzida clientela da época anterior (a Igreja, a Monarquia, os aristocratas e os altos banqueiros e comerciantes) por outra, consideravelmente mais larga, limitada nas classes médias. Os Salões foram constituídos para canalizar o novo mercado de arte, no entanto, com o tempo muitos artistas marginados se rebelaram contra estas exposições oficiais, criando os Salões Independentes. Por seu significado histórico é interessante lembrar o caso do pintor Gustave Coubert, cujo quadro “O Estúdio do Pintor, alegoria real dos último sete anos da minha vida” foi rejeitado pelo júri que decidia que obras estariam no Salão de 1855. Coubert pedindo dinheiro emprestado, decidiu organizar uma mostra particular de sua obra, que se converteu na primeira exposição individual da história da arte.

A segunda metade do século XIX foi pródiga em enfrentamentos entre uma cultura que ainda permanecia apegada ao academicismo e muitos artistas que defendiam sua total independência. Esses enfrentamentos suscitaram alguns fenômenos como: muitos artistas caminharam pela formação autodidata, com uma relação esporádica com outros artistas aos que consideravam afins; graças à independência da figura do artista pode tomar corpo o processo dos vanguardismos estilísticos; e a tensão entre a cultura ideológica da sociedade e a atitude independente do artista repercute diretamente no comportamento social deste.

O artista expõe mais ou menos livremente suas obras – das exposições coletivas à individuais – e, como contrapartida, o público tem um acesso aberto e direto aos mesmos. Mas é o marchand, intermediário entre obras e publico, entre artistas e clientes, que não só arbitra o mercado de arte, mas que, mediante as flutuações do valor comercial, influi decisivamente na valorização artística de um determinado artista. Junto ao aparecimento da figura do marchand, o século XIX facilita a profissionalização do crítico de arte.

A situação do artista dos tempos presentes é em certo modo paradoxal e, provavelmente, dependente da tensão entre a imagem altamente emancipada que tem de si mesmo e a complexidade do marco social no qual desenvolve seu trabalho. Em nenhuma outra época houve tantos homens e mulheres que se considerassem artistas como nos nossos dias, no entanto, ao mesmo tempo, só uma escassa minoria deles podem atuar como artistas profissionais, plenamente dedicados à sua obra. E nas últimas gerações assistimos a um aspecto essencial do paradoxo: enquanto parece debilitar-se a possibilidade da arte como profissão única, segue crescendo incessantemente a aspiração de muitos homens e mulheres a serem artistas e a serem conceituados como tais.

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