Publicado originalmente em “Au delà de la Peinture”, Cahiers d’Art (Paris) em 1936. “Qual o mecanismo da colagem?
Uma realidade pronta, cuja ingênua destinação parece ter sido fixada de uma vez por todas (um guarda chuva), encontrando-se subitamente na presença de uma outra realidade muito distante e não menos absurda (uma máquina de costura), num lugar onde ambas devem se sentir deslocadas (sobre uma mesa de dissecção), escapará por isso mesmo à sua destinação ingênua e a sua identidade; passará de seu falso absoluto, por uma série de valores relativos, para um absoluto novo, verdadeiro e poético: guarda chuva e máquinas de costura farão amor.
A transmutação completa seguida de um ato puro como o do amor se produzirá forçosamente sempre que as condições se tornarem favoráveis pelos fatos dados: acoplamento de duas realidades aparentemente não acopláveis sobre um plano que aparentemente não lhes convém.
Num dia chuvoso de 1919, achando-me numa cidadezinha às margens do Reno, fui atingido pela obsessão que exerciam sobre meu olhar irritado as páginas de um catálogo ilustrado onde figuravam objetos destinados à demonstração antropológica, microscópica, psicológica, mineralógica e paleontológica .
Reunidos ali, encontrei elementos de figuração tão distantes que o próprio absurdo dessa reunião provocou em mim uma súbita intensificação das faculdades visionárias e fez nascer uma sucessão alucinante de imagens contraditórias, imagens duplas, triplas e múltiplas que se sobrepunham umas às outras com persistência e a rapidez próprias das recordações amorosas e das visões do meio sono.
Essas imagens chamavam-se a si mesma planos novos, devido aos seus encontros num novo desconhecido (o plano de não convivência).
Bastava então embelezar essas páginas de catálogo, pintando ou desenhando, e para mim, uma cor, um esboço a lápis, uma paisagem estranha aos objetos representados, o deserto, um céu, um corte geológico, um soalho, uma linha reta significando o horizonte, para obter uma imagem fiel e fixa da minha alucinação: para transformar em dramas reveladores dos meus mais secretos desejos o que antes não passava de vulgares páginas de publicidade.
Reuni e expus em Paris, em maio de 1920, sob o título “La mise sous Whisky-Marin” ( O poder do Whisky-Marino), os primeiros resultados obtidos por esse procedimento, de Phallustrade e La Nourrrice des Étoiles.”