“Sinto uma alegria intensa, meu amigo, em conversar a sós com você. Não imagina o quanto sofri durante o debate que acabo de manter com a multidão, com desconhecidos; sentia-me pouco compreendido, sentia um tal ódio em torno de mim, que, muitas vezes o desânimo fazia com que a pena me caísse da mão.Hoje posso me conceder a volúpia íntima de um daqueles bons papos, que há dez anos mantemos entre nós. É só para você que escrevo estas poucas páginas, sei que as lerá com o coração e que, amanhã, me amarás mais afetuosamente. Imagine que estamos a sós em qualquer recanto perdido, longe de qualquer luta, e que conversamos como velhos amigos, que se conhecem até no mais íntimo e se compreendem só com um olhar.
Há dez anos falamos de arte e de literatura. Já moramos juntos – lembra-se disso? – e, muitas vezes, a manhã nos surpreendeu ainda discutindo, relembrando o passado, interrogando o presente, procurando encontrar a verdade e criar para nós uma religião infalível e completa. Elaboramos inúmeras ideias terríveis, desentranhamos e rejeitamos todos os sistemas, e, depois de um trabalho tão imponente, dissemos a nós mesmos que, fora da vida fecunda e individual, só havia mentira e estupidez. Felizes aqueles que têm recordações!
Vejo você na minha vida como aquele jovem pálido de que fala Musset. Você é toda a minha juventude; encontro você ligado a cada alegria, a cada sofrimento meu. As nossas mentes, na sua fraternidade, se desenvolveram lado a lado, porque penetramos a fundo nos nossos corações e em nossa carne. Vivemos à nossa sombra, isolados, pouco sociáveis, deleitando-nos com os nossos pensamentos. Sentiamo-nos perdidos no meio da massa complacente e frívola.
Em todas as coisas procurávamos homens em cada aurora, em cada quadro ou poema queríamos encontrar um trago pessoal. Estávamos convencidos de que o mestres, os gênios, são criadores e da um deles ciou um mundo com todas as obras, e repelíamos os discípulos, os imponentes, aqueles cujo mister consiste em roubar aqui e ali algum laivo de originalidade. Sabe que éramos revolucionários sem o saber?
Acabo de proclamar, em voz alta, o que por dez anos sustentamos em voz baixa. O eco da contestação chegou até você, não é? E você viu a boa acolhida que tiveram nossos caros pensamentos. Ah! pobres rapazes que viviam de modo sadio no coração da Provença, sob um sol resplandecente, e que cultivavam uma tal loucura, uma tal fé! Porque – talvez você o ignorasse – sou um homem de má fé.
O público já requisitou algumas dúzias de camisas de força para levar-me a Chareton. Louvo somente meus parentes e amigos, sou um idiota e um perverso, procuro o escândalo. Tudo isso faz pena, meu caro amigo, e é muito triste. Será por sempre a mesma história?
Será, então necessário falar sempre como os outros ou então calar? Lembra-se das nossas conversas? Dizíamos que a menor verdade nova não podia ser revelada sem provocar cólera e gritaria. E eis que, por minha vez, sou agredido e injuriado… A história é excelente, meu amigo. Por nada no mundo quero destruir estas páginas; não valem muito a não ser em si mesmas, mas foram, por assim dizer, a pedra de toque com a qual testei o público.
Agora sabemos disto, agrada-me expor uma segunda vez as minhas ideias. Acredito nelas, e sei que dentro de alguns anos terei razão aos olhos de todos. Não temo que elas me sejam atiradas na cara mais tarde.”
Émile Zola – Paris, 20 de maio de 1866
Émile Zola foi um consagrado escritor francês, considerado criador e representante mais expressivo da escola literária naturalista além de uma importante figura libertária da França.